Colaboração: Júlia Renó
“Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. As célebres palavras do psicoterapeuta suíço Carl Jung resumem de forma assertiva o trabalho desenvolvido pela psicóloga Marcella Naglis, madrinha e caravaneira da Fraternidade sem Fronteiras (FSF), que abraçou o projeto Nação Ubuntu e o campo de refugiados de Dzaleka, ambos no Malawi, incondicionalmente e reconhece naquele país sua ancestralidade e seu propósito de vida.
Marcella, junto com os psicólogos Adriana Dornellas, Leandro Pinho, Carolina Bezerra e Carolina Jumes e a tradutora Paula Xexeo desenvolveram, na caravana de julho de 2019, um trabalho no sentido de fortalecimento da identidade e história de vida das pessoas em situação de refúgio a fim de que elas construam, juntas, enquanto comunidade, a esperança de um futuro melhor, bem como para conseguirem lidar com as dificuldades que existem vivendo naquelas condições.
Formada há seis anos, Marcella é psicóloga clínica e, desde muito nova, nutria o sonho de ir para África conhecer de perto a realidade de um povo rico em histórias, mas também muito sofrido. Em julho, por meio da FSF, pode alcançar esse objetivo e ainda contribuir para a formação dos acolhidos, fazer amigos e memórias que levará para o resto da vida.
Ela conta que um novo passo foi dado na Caravana da Saúde, em dezembro de 2019, quando, junto com os psicólogos Adriana Dornellas, Adriane Bortoletto e Felipe Pereira, conheceu as iniciativas da própria comunidade como o “Woman Actions”, que empodera mulheres ensinando ofícios como a produção de biocarvão, e o The Branches, o qual trabalha com jovens e reaviva a esperança deles por meio da dança e da música. Percebendo a capacidade dessas pessoas, Marcella as convidou para uma formação pessoal na qual foi feito o resgate de suas qualidades e habilidades para, assim, todos se fortalecerem enquanto grupo e darem continuidade aos projetos.
Nessa oportunidade foram realizados inúmeros atendimentos que contaram com um grupo de lideranças locais, os quais fizeram uma formação de duas semanas com o grupo de psicólogos, antes do início da caravana. As consultas não visaram apenas resolver os problemas psicológicos dos pacientes, mas criar uma rede de apoio dentro da comunidade, por isso, a importância de criar multiplicadores que fossem conhecidos pelos acolhidos.
Ao fim da caravana, além de muitas histórias para contar, ela também conquistou amigos e voltou ao Brasil com as esperanças renovadas e muito aprendizado, deixando lá sua experiência e um grupo de mulheres unidas a fim de ter um futuro mais digno: o Tumaine, que significa esperança.
Confira na entrevista abaixo um breve relato de Marcella contando um pouco dos dias que passou com os acolhidos da Nação Ubuntu.
FSF: Qual foi o cenário que você encontrou no Malawi?
Marcella: Quando eu cheguei lá, identifiquei várias pessoas com estresse pós-traumático porque passam por situação de guerra: elas têm que deixar a casa delas por conta da guerra que se dá por questão religiosa, étnica, guerra de tribos. Imaginem essas pessoas que passam por tudo isso, tem tudo isso dentro delas e não têm um espaço para falar sobre essas dores. Ouvindo este discurso, a gente percebeu que eles eram gratos só por terem aquele espaço para falar, o pouco que eles estavam conseguindo falar, porque tem muito um tabu lá na África, de não poder falar as próprias dores, então, eles não choram, o olho enche de lágrima, mas eles não choram e, pelo fato de não chorarem, somatizam. Eles chegam no médico querendo medicamento e às vezes não tem uma causa fisiológica, é por conta de uma dor emocional, eles somatizam no corpo, na cabeça, na visão. As mulheres têm a questão do abuso sexual que sofrem porque, para chegar lá, elas passam por outros campos de refúgio e nesses campos, muitas são violentadas também.
FSF: Quais as diferenças que você encontrou na hora de fazer o atendimento?
Marcella: Para mim, foi muito profundo porque aqui no Brasil a gente trabalha com linhas, com abordagens específicas do comportamento humano. Lá a gente tem que entender que antes deles compartilharem uma situação psicológica, eles estão compartilhando uma condição social, que é a fome, a miséria, que é o desemprego. Não tem como explorar o que você gosta de fazer, quais são seus hobbies, as suas atividades. Então, por qual caminho eu tentava ir? Primeiro de validar a dor e o sofrimento deles, de dizer o quanto eles são sobreviventes de tudo que aconteceu e agradecer por eles estarem compartilhando essa dor, esse sofrimento porque é um tesouro muito rico e valioso, eles estarem compartilhando isso. Depois entender como é para eles estarem compartilhando com alguém essa dor que eles viveram.
Indo por outro caminho, é perguntar o que eles faziam antes, o que eles estão fazendo, tentar achar nem que for uma micropartícula de esperança para que eles se sintam vivos porque lá eles vão morrendo internamente sem esperança, é uma forma de encontrar a vida dentro deles, junto com eles. Em nenhum momento eu disse que a gente estava ali pra ajudar, porque acho que quando a gente fala que vai ajudar a gente se coloca numa postura de grande e o outro de necessitado, então, a gente fala que está ali para colaborar com o processo da pessoa. Por isso, é muito diferente de trabalhar aqui.
FSF: Se não tem como ter uma abordagem específica, como trabalhou com eles?
Marcella: Quando eles chegam, eles vêm com uma história saturada de dor e sofrimento, a gente valida essa história é tentar ajudar eles a construírem uma história alternativa que vai fazer sentido. Eu trabalhei uma metodologia que se chama Árvore da Vida: na raiz é de onde eles vieram, no tronco o que os fazem únicos e nos galhos quais são as esperanças. Honrar essas raízes para eles é muito forte porque ao longo da vida eles precisam abafar quem eles são e de onde vieram. É muito sofrimento, mas a partir do momento em que eles conseguiram se conectar com as raízes deles, eles conseguiram se apoderar da própria vida. Então, o caminho que eu segui e que eu vejo que é útil nesse contexto é eles se apropriarem da história deles, que é uma história muito rica.
FSF: Falando sobre esperança. Eles disseram se tem sonhos ou outras expectativas para o futuro?
Marcella: O sonho deles é daqui a dez anos voltar para a cidade deles e construir uma escola, criar um hospital, um centro de acolhimento para mulheres que ficam vulneráveis. A partir do momento em que eles começam a se conectar com os sonhos deles, começam a reconhecer as suas habilidades, porque eles têm muita dificuldade em se perceber como pessoas capazes e habilidosas, quando a gente começa a trabalhar sobre isso, eles começam a se conectar com uma identidade que eles tinham antes. Essa identidade vem sendo construída e eles vem se fortalecendo como indivíduo e como grupo.
FSF: A gente sabe que como profissional, durante um atendimento, você tem que se manter neutra, mas em uma situação diferente como essa, isso deve ser difícil de acontecer, não é? Como você se sentiu?
Marcella: Todo o tempo eu pensava em como eu sobreviveria. Não sei se eu teria força, eu nunca vou imaginar a dimensão disso. Teve uma pessoa do grupo que perguntou para mim “o que você pensa de tudo isso que a gente está contando”?. A gente conversar sobre isso é fácil, mas a pessoa que está nessa situação querer uma opinião sua, de uma perspectiva sua e você está na neutralidade, tentando facilitar, foi muito forte para mim. Primeiro me vi sem resposta, eu tinha para mim internamente, mas era só para mim. Eu comecei a pensar “eu posso voltar para minha casa, posso voltar para minha cidade, com minha comida, com o meu chuveiro. Para eles não, eles vão caminhar um pouco, voltar para o campo e continuar a vida que eles têm”.
FSF: E como foi para você como pessoa?
Marcella: Para mim, foi me conectar com a essência humana, com a sabedoria de quem não tem muito materialmente, mas de alma e de coração tem, e que transborda tanto que às vezes a pessoa não precisa fazer tanta coisa, é só ser quem ela é, que já consegue tocar a gente com o amor que ela tem, para mim é me conectar com o essencial da natureza humana, é me conectar com o ser humano, com a essência da vida que é o amor, o respeito, a colaboração. Então, eu aprendi muito sobre esses valores com eles, coisa que a gente precisa ir pra África para aprender, que a gente não aprende aqui. Então, ir pra África para aprender tudo isso é como se fosse uma imersão no que é o ser humano, e na força que o ser humano tem.
FSF: E como foi para você chegar lá depois de ter esse sonho de ir pra África e se deparar com uma realidade diferente daqui do Brasil?
Marcella: O que aconteceu foi meio que mágico. Eu não sei explicar, mas parece que eu já fazia parte daquele lugar, tive vários momentos dejavú, é como se eu já tivesse passado por lá. Então, eu comecei a refletir muito sobre a nossa ancestralidade. Isso fez eu refletir muito sobre qual o meu papel no mundo, qual meu papel quando eu vejo alguém que sofre, qual minha contribuição quando eu vejo alguém que está precisando de uma necessidade básica ou psicológica, porque me fez entender que a gente é igual a eles e o problema deles é meu também. Em contato com essa realidade, parecia pessoas que eu já conhecia há muito tempo, parecia que era um lugar que eu já tinha uma afinidade e tudo isso colaborou para o meu trabalho, me fez sentir muito segura, muito confortável. Foi impactante? Foi. Mas em nenhum momento eu senti tristeza, eu chorei de tristeza, em nenhum momento eu senti pena, mas a todo momento eu senti admiração e muita apreciação por eles serem quem eles são.
FSF: A gente fala muito das diferenças entre o Brasil e a África. Mas quais são os pontos iguais que a gente tem?
Marcella: Eu acho que o afeto e o amor, não só eu com eles, mas as pessoas entre elas, o respeito pelo ser humano, acho que isso é universal, as limitações do ser humano também. A filosofia Ubuntu é algo muito presente neles e é algo que a gente, de alguma maneira, tem dentro da gente, mas só vai esquecendo ao longo do tempo e quando a gente chega lá a gente acessa. Na verdade, a gente tem isso de compartilhar, mas quando a gente chega lá, a gente aprende muito mais, aqui a gente vai muito no automático, vai puxando a gente para outro lado, então, eu acho que a gente tem isso e que lá ajuda a gente a reconhecer essa nossa essência do ser humano de sobreviver, porque todos nós temos recursos para sobreviver. Então, o que eu vejo lá deles é ter histórias em potencial para serem vividas, terem esperança. São pessoas que tratam a gente como irmão, então, eu me senti muito bem tratada, respeitada e eles também sentem isso da gente. É muito forte a irmandade que eu sinto deles.
FSF: E como é a Marcella depois da caravana? Você sentiu que mudou muito depois que voltou para cá?
Marcella: A começar que quando eu cheguei foi muito impactante. Por exemplo, a gente pediu uma pizza em casa e
meu pai perguntou se estava boa e eu lembrei que lá eles não tem o que comer, não tem como achar a comida boa ou ruim. Eu falei que estava boa, mas se fosse antigamente, talvez eu fosse reclamar porque não estava do meu jeito. A gente passa a valorizar algumas coisas que pra gente é muito fácil, é um caminho muito fácil a gente se dispersar e reclamar, então, quando a gente vai lá, a gente tem uma experiência de profunda gratidão à vida, à vida que a gente tem, as coisas que a gente tem aqui, a família que a gente tem. Me fez olhar pra minha família. Não adianta ir pra África e não ser coerente com o que a gente vive lá, então, isso me traz essa consciência de viver lá o que eu vivo aqui e vice-versa. Ser coerente com quem a gente é, com o que a gente aprendeu lá, estar a todo momento lembrando. Todo dia eu lembro das pessoas que eu conheci, lembro da espiritualidade que elas me passaram, da fé que elas me passaram. A fé de pensar que alguma coisa vai dar errado e não, calma, tenha fé, olha o que aquelas pessoas estão passando e a fé que elas têm. Então, ter conhecido essas pessoas foi a maior referência do que eu quero desenvolver em mim aqui. Eu falava pra eles “vocês são meus ídolos” porque pra mim eles são a maior referência de ser humano, então, em todos os momentos de adversidades eu lembro deles, a todo momento que eu resgato o que eu vivi lá, eu resgato uma força de que é possível eu viver aqui em momentos de adversidade porque nem todos os dias a gente está bem, então, me faz lembrar deles e isso me fortalece, é muito forte.
FSF: Tem alguma história que te marcou mais?
Marcella: Todas as histórias marcam muito. O que marca mais foi o momento que eu vivi com eles, o momento que eles perguntaram pra mim qual era minha contribuição como humana, brasileira e branca. Outro momento que me marcou foi quando eu estava doente e pediram pra fazer uma oração pra mim, me dar esse suporte e eu estava numa situação que eu me sentia vulnerável, eu queria trabalhar, mas estava numa cama tomando soro tendo que lidar com o que eu estava sentindo, então, para mim, foi muito forte ver esse afeto e essa fraternidade deles comigo e os momentos eu que vivi com eles foram momentos em que a gente falou sobre muita dor, mas, assim, de um momento para o outro eles já estavam falando sobre o que fazia eles felizes, o que eles gostavam de dançar, as músicas que eles gostavam de cantar, isso já mudava o astral, mudava a energia e, assim, o que me inspirou bastante foi que o The Branches ensaiava todos os dias e eu ficava lá e eles pareciam uma máquina de tanto dançar, eles dançam umas cinco, quatro horas seguidas e eu ia e ficava lá. Eu ficava compenetrada por uma hora vendo eles ensaiarem, com toda aquela energia, acho que nunca vou conseguir dar nome para o que mais me tocou, mas tudo que eu falei pra vocês, os atendimentos, o grupo, a experiência do treinamento foi muito forte pra mim porque eu estava insegura, porque eu ia falar de temas um pouco desafiadores e eu não sabia como ia ser, então, tudo isso me marcou muito.
FSF: E teve alguma coisa que te surpreendeu?
Marcella: Tudo. Tudo me surpreendeu, tudo que vivi me surpreendeu, a reação deles quando a gente convidava eles pra olhar pra determinada reflexão, como me incluíram no grupo deles, me fizeram sentir confortável e pertencente ao grupo deles, me surpreendeu também quando eles perceberam a importância de conhecer os projetos deles, eles levaram muito a sério, pra mim que ia um ou dois, mas todo mundo indo junto conhecer. O momento em que eles receberam o certificado, momento que eu apresentei coisas que eu achei que seria o máximo e eles nem aí, o momento em que eles viram que eu tava chorando emocionada, eles fizeram “vem aqui, vem aqui todo mundo junto” eles foram me apoiar, muita coisa me surpreendeu. Ver o quanto eles se preocupam, em um dia quanta mensagem eu recebi porque eles se preocupam, eu não sei se eles acharam que eu tinha alguma coisa muito séria, porque virose africana não é qualquer virose não, ou eles devem ficar muito preocupados quando alguém fica doente. Eles vão lá só pra ver como você está, só pra perguntar se você está bem. Eu sinto como se fosse uma missão de vida.
As experiências vividas por Marcella no Malawi foram profundas e cheias de histórias que não couberam todas nesta entrevista. Para dar visibilidade à essas pessoas que têm tanto a contar, nos planos para o futuro, além de continuar com o trabalho naquele país, está o desejo dela escrever um livro para registrar todas as memórias feitas e as que estão por vir.