Por Marcele Aroca Camy
“Como eu ficava feliz ao ver uma cárie!”. A afirmação, aparentemente paradoxal, é da cirurgiã-dentista Tatiana Satie Ogawa, 32, referindo-se à experiência que teve como profissional, durante a caravana para Moçambique, em fevereiro de 2018.
O entusiasmo com o depoimento não parece adequado, mas entendendo a realidade que ela traz em suas palavras, é possível compreender a grandiosidade da situação: “Lutamos muito no Brasil contra cáries, mas no continente africano era motivo de felicidade, porque significava que aquela criança tinha uma alimentação com carboidrato e proteína. Isso era mais comum naquelas com idade igual ou superior a sete anos. Acredito que se deva ao fato se serem assistidas há mais tempo pela Fraternidade Sem Fronteiras”. E quando cárie não havia, era um sinal… da triste situação já esperada: fome.
Segundo a dentista, outro fato que chamava a atenção era a pigmentação e desgaste nos dentes das crianças até seis anos. Ela conta que depois soube que elas se alimentavam muito de raízes e ainda, quando necessário, utilizavam medicamentos à base delas, o que era bastante ácido para a dentição. “Então era muito legal quando eu via uma cárie, meu coração sorria”, reforça.
Mas teve momentos que “roubaram a cena” da cárie e fizeram Tatiana se perguntar por que aquelas crianças não eram como as outras? Um deles foi o comportamento resignado ou acostumado à dor. Ela relata que os pequenos não reclamavam em nenhum momento: “Estavam sozinhos, muitos eram órfãos e sentiam dores, eu sabia… mas não choravam como eu geralmente estava acostumada a ver nos consultórios. Com o tempo, entendi que eles sabiam que estávamos lá para ajudar e esperavam por isso, com gratidão. Fiquei muito impressionada, com a resistência física e interior”.
Uma pausa no trabalho: dois corações precisam ser “ninados”
Durante o atendimento odontológico, os dentistas usavam cadeiras de plástico e para uma postura mais adequada,
Tatiana lembra que optaram pela utilização de duas cadeiras, com os pacientes deitados ao colo. E enquanto ela trabalhava, sentia de longe um olhar na fila que a observava atentamente. Eram olhos de três anos de idade, que estavam assustados e ansiosos.
Para a surpresa da dentista, esses olhos se fecharam durante o atendimento e ficou apenas uma respiração de
conforto. O corpinho pequeno estava molhado… Havia chovido naquele dia e todos chegaram úmidos na aldeia. Os detalhes eram desconhecidos e rondavam os pensamentos da voluntária: Será que estavam em local sem cobertura e não dormiram durante à noite ou “pegaram” chuva no trajeto? Ou então, fazia tempo que essa criança não tinha um colo e por algum motivo sentiu segurança e se permitiu descansar. Sem pensar mais, ela pediu licença aos colegas e se retirou por alguns preciosos minutos, para “ninar” em pé, aquele menino. E assim, ela ressalta que essa cena, ficará pra sempre em suas melhores lembranças.
Mais que uma bala
Apaixonada por crianças, Tatiana ainda tirava um tempo para jogar baralho à noite com elas e caravaneiros. Em uma dessas situações, ela se deparou com uma generosidade sem tamanho, ou melhor de sete anos.
Durante o jogo, sem interrupção, espontaneamente esse protagonista retira uma bala do bolso (que provavelmente ganhou de um padrinho), reparte em dois e oferece a outro menino de idade semelhante. O outro aceita e somente depois disso, é que a outra metade ganha uma boquinha de mastigação natural e o jogo continua. Mas pra quem observou, continua diferente: “Foi a bala mais especial que já vi. Aquele menino não tem o que comer e dividiu com o outro. Foi uma grande lição de vida e é impossível ver o mundo como antes”, admite a dentista, com a emoção de quem revive o momento.
Em dobro
Tatiana Satie Ogawa conheceu o movimento humanitário Fraternidade Sem Fronteiras em abril de 2017, quando se tornou madrinha do projeto e reprogramou as férias para participar da caravana à África. Durante toda a viagem, ela dividiu tudo com o marido e mesmo à distância, juntos eles viveram momentos e tomaram importantes decisões, como a de apadrinhar.
Ela conheceu a história de duas irmãs gêmeas.“A mãe havia morrido no parto e o pai abandonado as duas. Elas estavam com a avó em local muito mais que precário. Há poucos metros da casa que habitavam, tinha um rio cheio de hipopótamos e crocodilos. Além disso, ficamos sabendo que lá quase não chove e acontece, alaga todo o local”, relembra a caravaneira, sensibilizada.
Ela tem duas sobrinhas gêmeas e inevitavelmente comparou com a realidade delas, incluindo o nascimento, quando tiveram acesso aos melhores hospitais. “Liguei para o meu marido no Brasil e apadrinhamos o projeto Acolher Moçambique imediatamente, para que elas e outras crianças pudessem ter acesso à assistência da Fraternidade Sem Fronteiras. São R$50 mensais que tem o valor de uma vida, duas, milhares…”.
Ubuntu!
Saindo pela primeira vez do país para contribuir em um trabalho voluntário, Tatiana diz categoricamente que pretende voltar para a África ainda em 2019. Foram 13 dias, junto a mais 48 pessoas, em ricas vivências na aldeia Muzumuia, localizada no distrito de Chókwe, província de Gaza em Moçambique (África) – enquanto outro grupo estava em Chicualacuala.
E assim, a caravaneira finaliza: “Aprendi muito não só com as pessoas de lá, mas também com os colegas caravaneiros. Todas as noites tínhamos nossas conversas em grupo e encerrávamos com oração. Era muito especial e por isso, de todas as palavras que aprendi, guardo uma para sempre. Eu já havia escutado mas não vivido o significado, que é… Eu sou porque nós somos. A minha dor é a sua dor: Ubuntu!”.