30 dias de África
“Kamila você vai para África”. Nunca uma frase teve tanto impacto na minha vida.
Eu já estava dentro do avião, talvez o meu maior sonho sendo realizado… e pelas histórias que escuto trabalhando na sede da Fraternidade sem Fronteiras, pelos whats, inbox e directs que recebo, é também o de muita gente estar naquele continente. O que nos separa de lá além de uma imensidão azul? Sorrisos que vêm da alma. Pureza.
Moçambique
Embarquei dia 25 e cheguei a Maputo, capital de Moçambique, dia 26, já no final da tarde. Dia 27 pela manhã: estrada. Após três horas e meia chegamos e fomos recebidos com música na aldeia de Muzumuia, no centro de acolhimento modelo da Fraternidade sem Fronteiras. E seja quem for que vá a qualquer uma das aldeias, equipe do caldeirão do Huck e o próprio Luciano, caravaneiros, Alok ou qualquer outra pessoa, a recepção é a mesma: música, sorrisos e abraços. Abraços longos, com sentimentos de “Obrigada por você estar aqui, estamos felizes com a sua chegada”. Agradecem não somente nossa presença, mas por serem vistos… esperança.
As primeiras horas, se deixar, são só de abraços, fotos, cosquinhas e beijos… quantos beijos, as meninas já começam a mexer no nosso cabelo e os meninos no celular, eles amam se olhar na tela… você olha ao redor, os encara e cai a ficha, eles não têm nada, eles só têm a eles mesmos. A gente chega com nossas mochilas, nossos vários apetrechos com materiais do mundo ocidental, tão importantes, que descobre que no MUNDO REAL, não vale de nada. Aprendemos ali a diferença de viver e sobreviver, do ser e não ter.
Entre tantas histórias, a realidade de Fina, uma moçambicana de três anos. Já estava escurecendo na chegada da caravana do Alok, a pequena e suas duas irmãs, um pouco só maiores, andavam curiosas em volta do centro de acolhimento, notável que desconheciam o que era ou o que acontecia lá dentro. Pedimos para conhecer sua casinha e assim descobrimos que mãe e seis filhos estavam há poucos dias na região, abandonados pelo pai que fora para África do Sul com nova esposa em busca de emprego – situação comum nas aldeias de Moçambique. Na manhã seguinte nosso primeiro destino era Fina. Com a mesma roupinha do dia anterior, lá estava ela sentada embaixo de uma árvore comendo CHIMA – comida típica feita da farinha da mandioca – SUJA. Dentro da casa nem colchão tinha. Agora têm. O final dessa história, além de compras para casa, higiene pessoal e vestuários para toda a família, eles agora estão inseridos no programa.
São muitas histórias como a de Fina, ou piores, é preciso um relato para cada uma. Para cada pessoa, o choque de realidade bate de uma maneira. No meu caso a experiência serviu de reforço e posso dizer que também de conforto. Reforcei minha essência no lado do bem e confortei minha cabeça de ser correta, veja bem, não perfeita, somos todos imperfeitos e muito apegados ao ego, ao egoísmo e tantos grandes defeitos despejados em pequenas atitudes, infelizmente normais ao nosso mundo, mas ainda assim existe a escolha de um lado, e eu lá me assegurei que continuo no caminho certo. Um bom dia, um abraçar ou dar as mãos, compensa muito.
Foram 13 dias nas aldeias Moçambicanas, visitando “casas” – que ao menos são chamadas assim – conhecendo histórias que me ensinaram mais que qualquer escola, que muitas palavras dos meus pais, que muitos tropeços que já dei. Conheci a vovó que comia castanha, a vovó que mora no lixão, a vovó do Alok, a Malfa, e tantos outro rostinhos que antes eu e muitos ainda só conhecem por fotos… o palpável e inimaginável até ser vivido.
Malawi
De Moçambique para Malawi, novo abraço e desafio da Organização, a maior caravana com 50 voluntários da Fraternidade na África, encontrando uma realidade ainda nova. Um campo de refugiados, 40 mil pessoas, 23 mil crianças, 600 idosos. Diferente de Moçambique e Madagascar, quantos rostos refletidos da dor, da fuga e das perdas. Famílias e vidas deixadas para trás decorrentes de guerras e medos, muito medo. Mas o mais impressionante? O amor, quanto carinho e afeto, quantos cuidados uns com os outros, com o próximo. Uma família com milhares e mais 50 pessoas agora. Nos ensinaram isso – Mike, Felly, Frank e Prince, os líderes UBUNTU – Eu sou porque nós somos.
Lembram dos abraços longos, acho que todo o continente tem essa qualidade e mais tantas outras. Cada caso que chegava nas “salas” dos médicos eram emergencialmente tratados, e depois vinham os abraços. Crianças queimadas, pais destruídos. Famílias separadas, órfãos acolhidos. Tantas doenças e dores, no estômago, na cabeça, no peito, pés, mãos, e ainda as dores no coração. Os médicos e até os que não são da área da saúde, viramos um pouco psicólogos – imaginem as três psicólogas e uma psiquiatra que estavam lá – todos choramos.
Conheci José. Refugiado do Congo, com apenas quatro anos, chegou no colo de sua mãe no segundo dia de atendimentos da saúde apresentando graves queimaduras no corpo. Sua casa fora incendiada, atingindo-o toda parte de trás da cintura para baixo. Foram oito trocas de curativos e na última sua mãe ajoelha em agradecimento. Lágrimas de alegria apesar da dor. Agora como vir embora com José, Cristine, Divine e tantas outras histórias do campo Dzaleka também na cabeça.
Malawi nos mostrou a força da resiliência, da união e da vida. Não consigo descrever aqui exatamente tudo o que vi e vivi nesses dias na África. Algumas fotos não precisam de legenda, mas resolvi escrever em um livro. A Fraternidade é feita de histórias e o seu coração são as pessoas reais delas. Voltei com desejos gigantescos de mostrar ao mundo em reportagens a transformação que é feita. São 34 centros de acolhimentos, um início de tudo, mais de 17 mil padrinhos voluntários, 11 projetos em seis países e ainda Malfa, Shelton, Vovó Tefassi, Especiosa, Papa Wagner, José, os Ubuntus e muitos outros nomes.
Qual deles você quer saber a história?
Serginho (cinegrafista do Alok) em gravação de piloto
Kamila Lovizon
Assessora de Imprensa da Fraternidade sem Fronteiras